quinta-feira, setembro 18, 2008

Dialética

























Sofro intempéries. O vento alisa palavra a ponto de esculpir pensador. Um sentimento faz neblina na beira dos olhos até pupila tecer arco-íris. Sinal da Antiga Aliança. Noé, uma arca, o dilúvio e a pomba portando esperança. Um flamingo se equilibra intenso no horizonte até o sol se pôr em suas asas. Céu aberto em dois tons, de anil. Tantas estrelas quanto os sinais do teu corpo.Cruzo os dedos. Vênus. Espuma do mar, sangue de Urano.Três Reis Magos. Encontro. Fita do Bonfim, Senhor. Senhor. Ao chão, depois de tanto, de muito. Suspiro. Vermelho. Letras de forma em negrito. Três nós. Papel cartão azul, tinta branca. As frases que aguardei pra te dar. Saturno. Anéis. Teus dedos. Todos os plexos do meu corpo. Linhas da tua mão esquerda tatuadas no meu pé direito. 33. Ômegas. Cristo. Delibero. Sim. Linhas serpenteiam nas palmas de mãos entrelaçadas. Caminhos. Os passos desalinhando estrelas. A cada dois anos, as marcas mudam. Todas. Vês? Rosas, brancos e laranjas. Flamingos. Voos. Já escolhi o destino.


Cecília Braga



'Pouco a pouco, um dia, pude. Apliquei meu coração a isso, vislumbrei entre névoas, em altura longínqua profunda, a minha estrela-da-guarda. Ah, revê-la. lembrou-me algo de maior, imensamente mor - o que podia valer-me. Como surge a esperança? Um ponto, um átimo, um momento. Face a mim, eu. Àquele ponto, agarrei-me, era um mínimo glóbulo de vida, uma promessa imensa. Agarrei-me a ele, que me permitia algum trabalho de consciência. Sofria, de contrair os músculos. Esta esperança me retorna, agora, mais vezes, em certos momentos. É quando me esforço por reunir as células enigmáticas, confiar em que possa, algum dia, conseguir-me a desassombração, levantar o meu desterro. Sofro, mas espero. Antes da experiência, profundamente anímica. Tenho de tresmudar-me. Sofro as asas'.

Páramo, in Estas Estórias, João Guimarães Rosa.