quarta-feira, abril 23, 2008

Éter

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'Senhor, sinto que a Terra do meu espírito é ainda inconsistente e vazia, que as trevas cobrem a superfície do abismo... Assim está minha alma. Deus meu, assim está minha alma. Terra deserta e vazia, invisível e informe, e as trevas cobrem a superfície do abismo.Mas do abismo o meu espírito te invoca, Senhor, para que tu cries, também de mim, novos céus e novas Terras'.
Monge Cartuxo
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Sem hesitar, acreditava que os quatros elementos faziam o desejo ser. Sobejo. Por isso, também, o corpo tencionava. Mas não só. E nem sozinho. Depropósito é cidadão freático.Por isso, quando ela encontrar nascentes em um corpo há de se curvar para beber de rios subterrâneos, apaziguar essa sede ancestral. Das origens: a água. E essa ideia, corrente de ar, assanhando os pensamentos: O inconsciente é líquido. Lugar de criação. O Espírito de Deus pairando sobre as águas, as moléculas se agrupando. Lençol freático alimentando nascentes, poços. Os ciclos, as repetições. Jesus dizendo: Dai-me de beber que tenho sede, à samaritana. Repetia as palavras do Cristo: 'se conhecesse o Dom de Deus...', até sentir. Água viva. E nunca mais terás sede. Se o tempo fosse linear, talvez. Nunca mais é tão eterno que escapa, para sempre. Tem sede. No sempre. No nunca. Sempre mais. O sentimento tensiona o pensamento, e tanto.Precisava forçar a linguagem ao ponto de instrumento de corda. Vocal. Ar dedilhando palavras. Ar. É preciso vibrar para ser som. Estende as mãos, depois o corpo, para sentir na pele a música do mundo. Fecha os olhos para se ver dançar. Leve. Ar. Deixa esse canto primeiro inaudível das coisas ser silêncio falaz. Escutas?. Um grito em estado mineral sentou na beira de sua voz. Às vezes, é preciso contorcer um homem até que se cresça seus caninos. Assim, talvez uive. Talvez, rosne. Talvez, morda. Ou apenas assuste. Por ser tão ela. Água. As inundações, as secas, as cheias e as vazantes. Água. 70% do corpo. Líquido amniótico. A vida. O embalar que acalma, ainda e sempre. Os braços da mãe, colo do pai. Cantiga de ninar. Os próprios braços ao redor de si. Desamarra devagar os últimos laços, como quem se despe, sem pressa e, deixa deslizar na superfície da pele essa roupa desgastada dos dias. Cansou de ser outono nos olhos. Mergulhou e emergiu de novo nome. Batismo de profeta. O movimento. A mudança. Na tormenta, sempre se pode andar sobre as águas. Ou mergulhar nelas, bem fundo. Quem sabe, cultivaria grãos de mostarda para alimentar a fé. Caso Iemanjá lhe tirasse da água. Viva. E pudesse remover duas ou três montanhas. Terra. Seu corpo em pó. Barro. Ser. Provada no fogo.Desterritorializada no encontro. Terra. Jesus desenhando com o indicador na areia: Ninguém te condenou? Nem eu condeno a ti. Vá, e não peques mais. Mas pecaria, por crê. Caio Fernando repetindo: "não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa'. .... . É tempo de nascer de novo, eu sei. Pentecostes. O Espírito de Deus descendo em línguas de fogo. Ela falando em outras línguas. Sobre o mesmo assunto. Fogo. Sarsa ardente. Tudo queimando sem se consumir. Desejo. A Voz de Deus flamejando: Tira a sandálias dos pés porque o lugar em que estás é santo. Descalço. O corpo, templo. Nu. Intimidade que desmascara. Raniero Cantalamessa dizendo tão franciscanamente: 'a intimidade absoluta procura, talvez sem o saber, o centro do ser, o ponto de fusão, o lugar de repouso'. Tem sede. 'Se conhecesse o Dom de Deus...'. Se.
Cecília Braga

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'...De profundis? Alguma coisa queria falar... De profundis... Ouvir-se! prender a fugaz oportunida­de que dançava com os pés leves à beira do abismo. De profundis. Fechar as portas da consciência. A princípio perceber água corrompida, frases tontas, mas depois no meio da confusão o fio de água pura tremulando sobre a parede áspera. De profundis. Aproximar-se com cuidado, deixar escorrerem as primeiras vagas. De profundis... Cerrou os olhos, mas apenas viu penumbra. Caiu mais fundo nos pen­samentos, viu imóvel uma figura magra debruada de vermelho-claro, o desenho com um dedo úmido de sangue sobre um papel, quando se arranhara e en­quanto o pai procurava iodo. No escuro das pupilas, os pensamentos alinhados em forma geométrica, um superpondo-se ao outro como um favo de mel, alguns casulos vazios, informes, sem lugar para uma refle­xão. Formas fofas e cinzentas, como um cérebro. Mas isso ela não via realmente, procurava imaginar tal­vez. De profundis. Vejo um sonho que tive: palco es­curo abandonado, atrás de uma escada. Mas no mo­mento em que penso "palco escuro" em palavras, o sonho se esgota e fica o casulo vazio. A sensação murcha e é apenas mental. Até que as palavras "pal­co escuro" vivam bastante dentro de mim, na minha escuridão, no meu perfume, a ponto de se tornarem uma visão penumbrosa, esgarçada e impalpável, mas atrás da escada. Então terei de novo uma verdade, o meu sonho. De profundis. Por que não vem o que quer falar? Estou pronta. Fechar os olhos. Cheia de flores que se transformam em rosas à medida que o bicho treme e avança em direção ao sol do mesmo modo que a visão é muito mais rápida que a palavra, escolho o nascimento do solo para... Sem sentido. De profundis, depois virá o fio de água pura. Eu vi a neve tremer cheia de nuvens rosadas sob a função azul das vísceras cobertas de moscas ao sol, a im­pressão cinzenta, a luz verde e translúcida e fria que existe atrás das nuvens. Fechar os olhos e sentir co­mo uma cascata branca rolar a inspiração. De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar pala­vras e as palavras são mentirosas e eu continuo a so­frer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes den­tro de mim? por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, aju­dai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meus dedos e encaminha-se para a morte sere­namente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não sa­berei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus, dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lágrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxílio que eu não tenho peca­dos, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada, das profundezas chamo por vós, das profundezas cha­mo por vós das profundezas chamo por vós das pro­fundezas chamo por vós...
Agora os pensamentos já se solidificavam e ela respirava como um doente que tivesse passado pelo grande perigo. Alguma coisa ainda balbuciava den­tro dela, porém seu cansaço era grande, tranqüili­zava seu rosto em máscara Usa e de olhos vazios. Das profundezas a entrega final. O fim...
Mas das profundezas como resposta, sim como resposta, avivada pelo ar que ainda penetrava no seu corpo, ergueu-se a chama queimando lúcida e pura... Das profundezas sombrias o impulso incle­mente ardendo, a vida de novo se levantando infor­me, audaz, miserável. Um soluço seco como se a tivessem sacudido, alegria rutilando em seu peito in­tensa, insuportável, oh o turbilhão. Sobretudo acla­rava-se aquele movimento constante no fundo do seu ser — agora crescia e vibrava. Aquele movimento de alguma coisa viva procurando libertar-se da água e respirar. Também como voar, sim como voar... andar na praia e receber o vento no rosto, os cabelos esvoaçantes, a glória sobre a montanha... Erguendo-se, erguendo-se, o corpo abrindo-se para o ar, entregando-se à palpitação cega do próprio sangue, notas cristalinas, tintilantes, faiscando na sua alma... Não havia desencanto ainda diante de seus próprios mistérios, ó Deus, Deus, Deus, vinde a mim não para me salvar, a salvação estaria em mim, mas para abafar-me com tua mão pesada, com o castigo, com a morte, porque sou impotente e medrosa em dar o pequeno golpe que transformará todo o meu corpo nesse centro que deseja respirar e que se ergue, que se ergue... o mesmo impulso da maré e da gê­nese, da gênese! o pequeno toque que no louco deixa viver apenas o pensamento louco, a chaga luminosa crescendo, flutuando, dominando. Oh, como se har­monizava com o que pensava e como o que pensava era grandiosamente, esmagadoramente fatal. Só te quero, Deus, para que me recolhas como a um cão quando tudo for de novo apenas sólido e completo, quando o movimento de emergir a cabeça das águas for apenas uma lembrança e quando dentro de mim só houver conhecimentos, que se usaram e se usam e por meio deles de novo se recebem e se dão coisas, oh Deus.O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selva­gem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastra­vam-se pelo seu corpo assustado e o que neles va­lia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gesta­ção da infância e de sua dolorosa imaturidade reben­taria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, so­bretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mes­ma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fun­dido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreen­são de mim mesma em certos momentos brancos por­que basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo'.

Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem.