quinta-feira, maio 15, 2008

Liebestod *

























Não te espantes. Em dias assim, ela costuma encostar o pensamento nos joelhos. Só para sentir a razão vacilar. Se corpo insistir tremer em um verso, ela estende as mãos sobre a Liturgia das horas. Até que um suspiro faça o passar do tempo alojado nas páginas dos dias ser solúvel em raios de sol. Dessa maneira que ela tem de abrir as persianas de um quarto fechado, adiado no desejo de estar, e assistir a poeira dançar em frestas de sol. Quando a lembrança lhe invade os olhos feito cisco, ergue os dedos calejados de bordar desculpas. E faz malabares com raios e trovões, só para ter nas mãos luz e som que esbravejam. Colhe das tempestades. Deixa o medo sombrear o gesto, e ele ganha intensidade. Tem esse grito emperdenido lhe arranhando a voz. Sua prece é vermelha. Quando fica louca, esculpe palavras. Fecha as mãos como quem luta, simula um coração batendo. Lembra que nos átrios habita um vazio, essa possibilidade de fazer tudo circular. Campos de gramas azuis, um lírio vermelho. Senta na estrela d'alva. O céu ela encosta na terra enquanto desenha a palavra sacra de Tagore, e a terra cede suave ao redor de si: abre-se ao passar dos dedos, mar Vermelho na presença de Moisés. E o pensamento desliza na paz de quem se inscreve com brasas no livro da vida. Na nudez dos pés enxerga os descaminhos. Quando não lhe resta razões, caminha. Nunca conseguiu dar norma aos passos. Os sentimentos flamejam nos olhos, um acobrear do castanho. Se olhares bem, vais te surpreender no não-tempo, e verás que algumas mulheres ainda ardem nas fogueiras. Dançam em florestas fechadas. Trazem a primavera na boca. E o outono estampado nas unhas. A alma entrelaçada no universo. No falar, música das esferas. Não te espantes. Sentada ela tece um casulo. E pinta o corpo para a guerra. Há sempre um labor na espera. Deixa o cume da montanha encontrar o rio, só para mudar o curso das águas. Descobriu uma escuridão nos olhos da coruja. Rasga a barra das saias, desfia o enredo. Ela quer a palavra- fruta-madura. Sua escrita é esse descascar com unhas e dentes essa linguagem amarelo-manga, até que a polpa lhe escorra pelos cantos da boca. Sumo e Suco. E a semente lhe reste nas mãos. Essa paz, ela entrega quando escreve. Não te espantes. Fecunda-ação. Só se pontua no gozo o suspiro da palavra-sêmem.
Cecília Braga
Do que ela escreveu no chão, Deus tirando vida do barro: Se não falas,


Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite.
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

Rabindranath Tagore
* "Liebestod"- da Ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner.

quinta-feira, maio 08, 2008

A Literatura e a Vida, por Gilles Deleuze.

Decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o informe, com o inacabado, como disse Gombrowicz e como o fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravaza toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível. Estes devires encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, por intermédio de portas, entradas e zonas que compõem o universo inteiro, como na poderosa obra de Lovecraft. O devir não vai noutro sentido: não devimos Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que mulher, animal ou molécula têm uma componente de fuga que se descarta à sua própria formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhor razão de escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia vir a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa 2.
O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efectua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o, a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança 3. Do mesmo modo Kafka, o campeão de natação que não sabia nadar. Toda a escrita comporta um atletismo, mas não tem nada que ver com uma reconciliação da literatura com o desporto, ou com o fazer da escrita um jogo olímpico - este atletismo exerce-se na fuga e no eclipse orgânicos: um desportista na cama, dizia Michaux. Devimos tanto mais animal quanto o animal morre; e, contrariamente a um preconceito espiritualista, quem sabe morrer é o animal, é o animal que tem o sentido disso ou o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: “as nossas pobres pequenas patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade”. Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz4. A língua deve atingir desvios femininos, animais, moleculares, e todo o desvio é um devir mortal. Não há linha recta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para revelar a vida nas coisas. Escrever não é narrar as recordações, as viagens, os amores e o luto, os sonhos e os fantasmas. É o mesmo pecar por excesso de realidade ou de imaginação: nos dois casos é o eterno papá-mamã, estrutura edipiana que projetamos no real ou que injetamos no imaginário. Trata-se de um pai que se vai buscar no fim da viagem, no seio de um sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o seu pai-mãe. Marthe Robert levou até ao fim esta infantilização, esta psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao escritor senão entre Bastardo ou Filho reencontrado 5. Mesmo o devir-animal não está ao abrigo de uma redução edipiana, do género “o meu gato, o meu cão”. Como diz Lawrence, “se eu sou uma girafa e os ingleses vulgares que escrevem sobre mim são cães bem educados, aí está, os animais são diferentes, detestais instintivamente o animal que sou”6. Regra geral, os fantasmas não tratam o indefinido a não ser como máscara de um pronome pessoal ou de um possessivo: “uma criança apanhou” transforma-se depressa em “o meu pai me bateu”. Mas a literatura segue a via inversa, e só se levanta quando descobre sob as pessoas aparentes a potência de um impessoal que de modo nenhum é uma tomado num devir-mulher, depois num devir-rato, depois num devir-imperceptível em que se apaga. Generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança.
Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos retira o poder de dizer Eu (o “neutro” de Blanchot) 7. Claro, as personagens literárias são perfeitamente individuadas, e não são nem vagas nem gerais; mas todos os seus traços individuais elevam-nas a uma visão que as transporta para um indefinido, como um devir demasiado poderoso para elas: Achab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é um tipo, mas, pelo contrário, os seus traços individuais (amar uma rapariga, etc.) fazem com que aceda a uma visão, ele vê o ouro, de tal maneira que se põe em fuga numa linha de feiticeira na qual adquire a potência do indefinido — um avarento… de ouro, cada vez mais ouro… Não há literatura sem fabulação, mas, como Bergson o soube ver, a fabulação, a função fabuladora, não consiste em imaginar nem em projectar um eu. Contrariamente a isso, ela atinge essas visões, eleva-se até esses devires ou potências. Não se escreve com as neuroses. A neurose, a psicose, não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo se interrompe, quando está impedido, preenchido. A doença não é processo, mas paragem do processo, como no “caso Nietzsche”. E também o escritor como tal não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem.
A literatura surge então como uma tarefa de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas usufrui de uma irresistível pequena saúde que vem daquilo que viu e escutou, das coisas demasiado grandes para ele, demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, e que lhe dá, no entanto, devires que uma grande saúde dominante tornaria impossíveis 8. Do que viu, do que escutou, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos furados. Qual a saúde que seria suficiente para libertar a vida em todo o lado onde ela está presa, pelo homem e no homem? É a pequena saúde de Espinosa, enquanto dura, sendo até ao fim testemunha de uma nova visão, que se abre à sua passagem. A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as recordações, a menos que se faça delas a origem ou o destino colectivos de um povo a vir ainda emerso nas suas traições e abjurações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem narrar as suas próprias recordações, mas como recordações de um povo universal composto pelos emigrantes de todos os países. Thomas Wolf “deita por escrito toda a América, na medida em que ela se pode encontrar na experiência de um só homem” 9. Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, absorvido num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo não designa já um estado familiar, mas o processo ou a deriva das raças. Eu sou uma besta, um negro de raça inferior para toda a eternidade. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central, Melville para a América, apresentam a literatura como enunciação colectiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que, por intermédio do escritor e nele próprio, encontram a sua expressão 10.
Ainda que reenvie sempre para agentes singulares, a literatura é agenciamento colectivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é um assunto de pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, pelas raças e as tribos, e que não habite a história universal. Todo o delírio é históricomundial, “deslocamento das raças e dos continentes”. A literatura é delírio, e nisto joga o seu destino entre os dois pólos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. Ainda aí, há um estado doentio que pode sempre interromper o processo ou o devir; e encontramos a mesma ambiguidade da saúde e do atletismo, o risco constante que um delírio de domínio se misture com o devir bastardo, e arraste a literatura para um fascismo larvar, a doença contra a qual ela luta, até que a diagnostique nela própria e lute contra ela própria. Fim último da literatura, distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (“para” significa menos “no lugar de” do que “na intenção de”). O que a literatura faz na língua surge agora melhor: como diz Proust, aquela traça nesta uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patois reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante. Kafka fazia dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que vós, e porém não percebo 7uma palavra daquilo que dizeis. Criação sintáctica, estilo, é este o devir dalíngua: não há criação de palavras, não há neologismos que tenham valorfora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem.
A literatura apresentadois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou umadestruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma novalíngua na língua, por criação de sintaxe. “A única maneira de defender alíngua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fazer a sua língua” 11. Dir-se-iaque a língua está tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dosseus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, reside em que uma línguaestrangeira não é sulcada na própria língua sem que toda a linguagem, porsua vez, oscile, sem que seja levada a um limite, a um lado de fora ou a umavesso consistindo em Visões e Audições que já não pertencem a nenhumalíngua. Estas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que oescritor vê e escuta nos interstícios da linguagem, nos hiatos de linguagem.Não são interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele,como uma eternidade que não pode ser revelada a não ser no devir, umapaisagem que não aparece a não ser no movimento. Não estão fora dalinguagem, elas são o seu lado de fora. O escritor enquanto vidente eouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem queconstitui as Ideias. São estes os três aspectos que em Artaud estão perpetuamente emmovimento: a queda das letras na decomposição da linguagem maternal(R,T); a sua retomada numa nova sintaxe ou em novos nomes de alcancesintáctico, criadores de uma língua (“eTReTé”12); as palavras-soprofinalmente, limite assintáctico para onde tende toda a linguagem. E Céline,não podemos impedir-nos de o dizer, tão sumário o sentimos: a Viagem ou a decomposição da língua maternal; Morte a Crédito e a nova sintaxe como uma língua na língua; Guignol's Band e as exclamações suspensas como limite da linguagem, visões e sonoridades explosivas. Para escrever, talvez seja necessário que a língua materna seja odiosa, mas de maneira tal que uma criação sintáctica trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que a linguagem toda inteira revele o seu lado de fora, para além de toda a sintaxe. Acontece que se felicita um escritor, mas ele sabe que está longe de atingir o limite que se propôs e que não pára de se deslocar, que está muito longe de ter acabado o seu devir. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor.
Àqueles que lhe perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde: quem é que vos fala em escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa. Considerando estes critérios, vemos que, de entre todos aqueles que fazem livros com intenção literária, mesmo entre os loucos, muito poucos podem dizer-se escritores.
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11 Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster,em La Chronique fabuleuse, p.225).12 Como no original. [n.d.t.]
10 Cf. as reflexões de Kafka sobre as literaturas ditas menores, Journal, Livre de poche, p.179-182; e as de Melville sobre a literatura americana, D'où viens-tu, Hawthorne?, Gallimard, p.237-240.
8 Sobre a literatura enquanto assunto de saúde, mas para aqueles que não a têm ou que têm uma saúde frágil, cf. Michaux, posfácio a “Mes propriétés”, in La nuit remue, Gallimard. E Le Clézio, Haï, p.7: “Um dia, saberemos talvez que não havia arte, mas apenas medicina.”
9 André Bay, prefácio a Thomas Wolfe, De la mort au matin, Stock.
7 Blanchot, La part du feu, Gallimard, p.29-30, e L'entretien infini, p.563-564: “Qualquer coisa lhes acontece (aos personagens) donde não podem sair a não ser desapossando-se do seu poder de dizer Eu.” A literatura parece aqui desmentir a concepção linguística, que encontra a condição da enunciação nos “embrayeurs”, nomeadamente nas duas primeira pessoas.
4 Cf. J.-C. Bailly, La légende dispersée, anthologie du romantisme allemand, 10-18, p.38.
5 Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman, Grasset.
6 Lawrence, Lettres choisies, Plon, II, p.237.
2 Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster em La Chronique fabuleuse, p.225).
3 Le Clézio, Haï, Flammarion, p.5. No seu primeiro romance, Le procès-verbal, Folio-Gallimard, Le Clézio apresentava de maneira quase exemplar um personagem.
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Fonte: Deleuze, Gilles. “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.