sexta-feira, julho 31, 2015

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'E também quis ser. Aliás, só quis isso; eis a chave de minha vida: no fundo de todas essas tentativas que parecem desvinculadas, encontro o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de mim, esvaziar os instantes de sua gordura, torcê-los, secá-los, me purificar, endurecer, para produzir finalmente o som claro e preciso de uma nota de saxofone'. A Naúsea - Sartre.

terça-feira, julho 28, 2015

A poética dos espaços, Bachelard.

É preciso dizer então como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num "canto do mundo".

sexta-feira, julho 24, 2015

Jean-Luc Godard, Aimé Pache e o ato de resistência. Liberté et Patrie: "A imagem era mistério e perigo".

Curta sobre Aimé Pache, pintor de Vaud, Suíça.
 
'Como velho revolucionário, o pai não acreditava no poder das imagens, mas sim no poder das palavras.
- Pai, quero escrever para minha namorada.
- Vá em frente
- Quero dizer...mas não sei como colocar... que perdemos o trem, mas que ainda temos tempo...
- Escreva: "Não sei como colocar, mas quero dizer... quer perdemos o trem...".
- Mas foi isso que eu disse.
- Exatamente.
- É assim que se escreve?
- Sim, é assim que se escreve.
(...)
- Pai, qual é o melhor modo de saber se alguém é digno de confiança?
- Pergunte: "O que você leu?". Se responder: "Homero, Shakespeare, Balzac", então não é digno de confiança. Mas se responder: "Depende do que quer dizer com ler", então há esperança.
(...)
Descobre um velho caderno escolar com uma frase misteriosa de um ensaio francês. "Nem o sol  nem a morte encaram a própria face". Agora que seus pais estão mortos, finalmente compreende.
 - Compreende como?
- O caderno está cheio de rabiscos, mas pode ler isso: "Um substantivo é apropriado quando tem um único sentido". E abaixo: "O que é apropriado ao sol?". E mais abaixo: "O sol é um exemplo de um ser sensível por excelência, porque sempre pode desaparaecer. O mais inato na natureza é poder tirar tudo de si mesma, tudo o que necessita". E depois: "Traga a natureza para a pintura".
 




quinta-feira, julho 23, 2015

'O de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história', Lacan.

 
Rythy Pahn, cineasta cambojano e sobrevivente do genocídio sofrido por seu país entre os anos de 1975 e 1979.  “A Imagem que Falta” utiliza poeticamente antigas imagens e bonecos entalhados para recriar esses anos de terror onde o Camboja era governado pelo Khmer Vermelho. Quase dois milhões de cambojanos morreram no período. Rithy Panh procurava a imagem que falta: uma fotografia do Camboja tirada entre 1975 e 1979 pelo Khmer Vermelho: 'por si só, é claro, uma imagem não pode provar o genocídio, mas encoraja-nos a pensar, a meditar ou a escrever na história', até entender: 'essa imagem precisa faltar. Não a procuro mais. Não seria obscena sem um significado? Então a produzi. O que lhes apresento hoje...não é uma imagem ou a busca por uma imagem. Mas a imagem de uma busca como o cinema permite'. Pahn, faz sinthoma. E produz uma obra de arte que é ato de resistência.
 
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"Vejam o que é propriamente cinematográfico. (...). Fazer uma disjunção do visual e do sonoro. (...). Mas esta é uma idéia estreitamente cinematográfica, a de assegurar a disjunção do ver e do falar. (...). Uma voz 'fala' de alguma coisa, ao mesmo tempo nos faz 'ver' outra coisa, e enfim, aquilo de que nos falam está 'sob' aquilo que nos fazem ver. (...). A palavra se eleva no ar... ao mesmo tempo em que a terra que vemos se afunda cada vez mais, ou antes, ao mesmo tempo que isso de que essa palavra (que se eleva no ar) nos falaria, isso de que ela nos falaria... se afunda sob a terra. (...). Já que aquilo que vemos  é unicamente a terra deserta. Mas essa terra deserta está como que grávida  daquilo que há embaixo dela. (...). É exatamente isso de que a voz nos fala. (...). E se a terra e a voz nos fala de cadáveres, de toda linhagem de cadáveres que tomam lugar sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio (que vocês tem sob os olhos), nessa terra deserta, etc, tudo isso fará sentido.
 
A obra de arte não é um instrumento de comunicação. Há uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. (...). Sim, a título de resistência, qual é esta relação misteriosa entre a obra de arte e um ato de resistência? (...). Malraux desenvolve um bom conceito filosófico. Malraux diz uma coisa muito simples sobre a arte. Ele diz: 'É a única coisa que resiste à morte'. (...). Reflitam: o que é que resiste à morte? (...). A arte é isso que resiste, é isso que resiste. Ainda que não seja a única coisa que resiste (...). O ato de resistência não é uma obra de arte, se bem que de uma certa maneira ela faça parte dele. A obra de arte não é um ato de resistência, e entretanto, de uma certa maneira ela o é. (...).  Ora qual é este ato de fala que se eleva no ar, enquanto que seu objeto se afunda na terra? Resistência. Ato de Resistência. (...). De 'Moisés e Aarão' ao último Kafka. De passagem, e eu cito sem ordem, não sei a ordem: de 'Não Reconciliados' até 'Bach', é o quê? É essa música, essa música que é ato de resistência. Ato de resistência contra o que? Não é ato de resistência abstrato, é ato de resistência contra e de luta ativa contra a separação entre o sagrado e o profano. E esse ato de resistência na música culmina em um grito. Tal como há um grito em 'Woyzek', há um grito em 'Bach'. (...).
 
Tudo isso deve ser visto em um duplo aspecto. O ato de resistência, me parece, tem duas faces: ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. E qual relação haveria entre a luta entre os homens e a obra de arte? A relação mais estreita e para mim a mais misteriosa, exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: 'Pois bem, falta o povo'. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. E essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe uma obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe".
 
O que é o ato de criação?, conferência proferida por Gilles Deleuze  no Mardis de la Fondation em 17 de março de 1987.

quinta-feira, julho 16, 2015

Sonhos - Deleuze, Borges e Waking Life.



Mas eu penso em Minnelli. Minnelli, ele tem, me parece, uma idéia extraordinária sobre o sonho. (...). E a grande idéia de Minnelli sobre o sonho, me parece, é que o sonho concerne, antes de tudo, àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham concerne àqueles que não sonham. E por que isto os concerne? Porque sempre que há sonho do outro, há perigo. A saber: o sonho das pessoas é sempre um sonho devorador que ameaça nos engolir.
E que os outros sonhem, é muito perigoso, e que o sonho é uma terrível vontade de potência, e que cada um de nós é mais ou menos vítima dos sonhos dos outros, mesmo quando se trata da mais graciosa garota, trata-se de uma terrível devoradora, não por sua alma, mas pelos seus sonhos.
Desconfiem do sonho do outro, pois se vocês forem tomados no sonho do outro, vocês estarão perdidos.
Não sejam jamais apanhados pelo sonho do outro.
 
O que é o ato da criação?, por Gilles Deleuze - trecho desta conferência proferida no "Mardis de la Fondation", em 17 de março de 1987.
 
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As Ruínas Circulares, Jorge Luís Borges.
 
And if he left off dreaming about you…
Through the Looking-Glass, IV
 
Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não se contaminou de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da ribeira sem afastar (provavelmente, sem sentir) as espadanas que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, mareado e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Esse círculo é um templo que os incêndios antigos devoraram, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. O sol alto o despertou. Comprovou sem assombro que as feridas cicatrizaram; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito postulava; sabia que as árvores incessantes não conseguiram estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado respeitosos seu sonho e solicitavam-lhe o cuidado ou temiam-lhe a mágica. Sentiu o frio do medo e na muralha dilapidada buscou um nicho sepulcral e se tapou com folhas desconhecidas.
O objetivo que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o inteiro espaço de sua alma; se alguém lhe perguntasse o próprio nome ou qualquer traço de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e derruído, porque era um mínimo de mundo visível; a vizinhança dos lavradores também , porque estes se encarregam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.
No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos fatigavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam há muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de Anatomia, de Cosmografia, de magia: as fisionomias concentravam-se ávidas e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria em cada um a condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, previa em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar no universo.
Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que passivamente aceitavam sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas um par de horas no amanhecer) licenciou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um só aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas repetindo as de seu sonhador. A brusca eliminação de seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; seu progresso, no fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, sobreveio a catástrofe. O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente alcançou entre a cicuta aragens de sonho débil, listradas fugazmente de visões do tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articular algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.
Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um homem, ainda que penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem efígie. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Prometeu esquecer a enorme alucinação que no começo o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à recuperação das forças que o delírio havia exaurido. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma razoável parte do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Logo, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetário, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase subitamente, sonhou com um coração que pulsava.
Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o, durante quatorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e após todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: logo retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O pêlo inumerável foi talvez a mais difícil tarefa. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.
Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) prestavam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo derruído, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.
O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para desvendar-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava diariamente as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido… Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.
Gradualmente, habituou-o à realidade. Uma vez determinou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cimo. Esboçou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certo desgosto que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueiam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendiz.
Sua vitória e sua paz ficaram embaciadas de fastio. Nos crepúsculos do entardecer e da alba, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal praticasse idênticos ritos, noutras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, dois remadores o despertaram, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de tocar o fogo e não queimar-se. O mago recordou que de todas as criaturas que constituem o orbe, o fogo era o único que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.
O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; logo, para o Sul, o céu que tinha a cor rosa da gengiva dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujam o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas em seguida compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
 
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 E, quando se percebe, que se é um personagem sonhado no sonho de outra pessoa, isso é consciência de si.
Waking Life -  Trecho do Filme
 
 
 
 

quarta-feira, julho 01, 2015

A Literatura ou a vida...


Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.
Mas é preciso escolher: viver ou narrar.
(...)
Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De quando emquando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo.
Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer conta das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, Maio, junho. 1924,1925,1926.
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos acorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: "Era uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes". E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo.
(...)
Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.
 
Jean - Paul Sartre, A Naúsea.