quinta-feira, julho 23, 2015

'O de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história', Lacan.

 
Rythy Pahn, cineasta cambojano e sobrevivente do genocídio sofrido por seu país entre os anos de 1975 e 1979.  “A Imagem que Falta” utiliza poeticamente antigas imagens e bonecos entalhados para recriar esses anos de terror onde o Camboja era governado pelo Khmer Vermelho. Quase dois milhões de cambojanos morreram no período. Rithy Panh procurava a imagem que falta: uma fotografia do Camboja tirada entre 1975 e 1979 pelo Khmer Vermelho: 'por si só, é claro, uma imagem não pode provar o genocídio, mas encoraja-nos a pensar, a meditar ou a escrever na história', até entender: 'essa imagem precisa faltar. Não a procuro mais. Não seria obscena sem um significado? Então a produzi. O que lhes apresento hoje...não é uma imagem ou a busca por uma imagem. Mas a imagem de uma busca como o cinema permite'. Pahn, faz sinthoma. E produz uma obra de arte que é ato de resistência.
 
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"Vejam o que é propriamente cinematográfico. (...). Fazer uma disjunção do visual e do sonoro. (...). Mas esta é uma idéia estreitamente cinematográfica, a de assegurar a disjunção do ver e do falar. (...). Uma voz 'fala' de alguma coisa, ao mesmo tempo nos faz 'ver' outra coisa, e enfim, aquilo de que nos falam está 'sob' aquilo que nos fazem ver. (...). A palavra se eleva no ar... ao mesmo tempo em que a terra que vemos se afunda cada vez mais, ou antes, ao mesmo tempo que isso de que essa palavra (que se eleva no ar) nos falaria, isso de que ela nos falaria... se afunda sob a terra. (...). Já que aquilo que vemos  é unicamente a terra deserta. Mas essa terra deserta está como que grávida  daquilo que há embaixo dela. (...). É exatamente isso de que a voz nos fala. (...). E se a terra e a voz nos fala de cadáveres, de toda linhagem de cadáveres que tomam lugar sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio (que vocês tem sob os olhos), nessa terra deserta, etc, tudo isso fará sentido.
 
A obra de arte não é um instrumento de comunicação. Há uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. (...). Sim, a título de resistência, qual é esta relação misteriosa entre a obra de arte e um ato de resistência? (...). Malraux desenvolve um bom conceito filosófico. Malraux diz uma coisa muito simples sobre a arte. Ele diz: 'É a única coisa que resiste à morte'. (...). Reflitam: o que é que resiste à morte? (...). A arte é isso que resiste, é isso que resiste. Ainda que não seja a única coisa que resiste (...). O ato de resistência não é uma obra de arte, se bem que de uma certa maneira ela faça parte dele. A obra de arte não é um ato de resistência, e entretanto, de uma certa maneira ela o é. (...).  Ora qual é este ato de fala que se eleva no ar, enquanto que seu objeto se afunda na terra? Resistência. Ato de Resistência. (...). De 'Moisés e Aarão' ao último Kafka. De passagem, e eu cito sem ordem, não sei a ordem: de 'Não Reconciliados' até 'Bach', é o quê? É essa música, essa música que é ato de resistência. Ato de resistência contra o que? Não é ato de resistência abstrato, é ato de resistência contra e de luta ativa contra a separação entre o sagrado e o profano. E esse ato de resistência na música culmina em um grito. Tal como há um grito em 'Woyzek', há um grito em 'Bach'. (...).
 
Tudo isso deve ser visto em um duplo aspecto. O ato de resistência, me parece, tem duas faces: ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. E qual relação haveria entre a luta entre os homens e a obra de arte? A relação mais estreita e para mim a mais misteriosa, exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: 'Pois bem, falta o povo'. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. E essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe uma obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe".
 
O que é o ato de criação?, conferência proferida por Gilles Deleuze  no Mardis de la Fondation em 17 de março de 1987.

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