terça-feira, dezembro 23, 2008

quinta-feira, setembro 18, 2008

Dialética

























Sofro intempéries. O vento alisa palavra a ponto de esculpir pensador. Um sentimento faz neblina na beira dos olhos até pupila tecer arco-íris. Sinal da Antiga Aliança. Noé, uma arca, o dilúvio e a pomba portando esperança. Um flamingo se equilibra intenso no horizonte até o sol se pôr em suas asas. Céu aberto em dois tons, de anil. Tantas estrelas quanto os sinais do teu corpo.Cruzo os dedos. Vênus. Espuma do mar, sangue de Urano.Três Reis Magos. Encontro. Fita do Bonfim, Senhor. Senhor. Ao chão, depois de tanto, de muito. Suspiro. Vermelho. Letras de forma em negrito. Três nós. Papel cartão azul, tinta branca. As frases que aguardei pra te dar. Saturno. Anéis. Teus dedos. Todos os plexos do meu corpo. Linhas da tua mão esquerda tatuadas no meu pé direito. 33. Ômegas. Cristo. Delibero. Sim. Linhas serpenteiam nas palmas de mãos entrelaçadas. Caminhos. Os passos desalinhando estrelas. A cada dois anos, as marcas mudam. Todas. Vês? Rosas, brancos e laranjas. Flamingos. Voos. Já escolhi o destino.


Cecília Braga



'Pouco a pouco, um dia, pude. Apliquei meu coração a isso, vislumbrei entre névoas, em altura longínqua profunda, a minha estrela-da-guarda. Ah, revê-la. lembrou-me algo de maior, imensamente mor - o que podia valer-me. Como surge a esperança? Um ponto, um átimo, um momento. Face a mim, eu. Àquele ponto, agarrei-me, era um mínimo glóbulo de vida, uma promessa imensa. Agarrei-me a ele, que me permitia algum trabalho de consciência. Sofria, de contrair os músculos. Esta esperança me retorna, agora, mais vezes, em certos momentos. É quando me esforço por reunir as células enigmáticas, confiar em que possa, algum dia, conseguir-me a desassombração, levantar o meu desterro. Sofro, mas espero. Antes da experiência, profundamente anímica. Tenho de tresmudar-me. Sofro as asas'.

Páramo, in Estas Estórias, João Guimarães Rosa.

quarta-feira, julho 16, 2008

Abreu, Caio Fernando.


'Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para falar, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, o ver, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?
(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus.
Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço. Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã'.

sexta-feira, julho 11, 2008

Dustin O'Halloran Opus 23

Kaos


Nas coisas, o cuidado acentuado do tempo. Carícia de quem sem nunca partir, desusava ficar. Se ela espalma com ardor e pesar os dias, essas lixas em tons tão outonais, na poeira que acentou São Jorge , o Dragão , e três gotas de orvalho, é só para reler nos escombros os vestígios de quem foi sem ter sido. E se busca lugar numa cadeira de ferro verde ferida a ponto de cicatrizar em ferrugens é para se arrastar em terra seca ao capricho do vento no desejo de lugar oportuno para deitar as sementes que ninguém quis plantar. E, depois, sentar escassa. Com o corpo devastado por tantos imperativos, arado por interrogações. Esconder nas chagas uma orquídea branca. Regar com serenos os lençóis, e deixar desabrochar nas mãos algumas estrelas. Irrigar com raios de sol esse azul fundo de mar onde se planta pensamentos obscuros. E escavar com os olhos a arqueologia de seu futuro póstumo, para sentir as estranhas germinarem em verdes e vermelhos, semente , vida. E se erguer, flor-de-lótus, estrela rasgando o véu da escuridão.
Cecília Braga

quinta-feira, maio 15, 2008

Liebestod *

























Não te espantes. Em dias assim, ela costuma encostar o pensamento nos joelhos. Só para sentir a razão vacilar. Se corpo insistir tremer em um verso, ela estende as mãos sobre a Liturgia das horas. Até que um suspiro faça o passar do tempo alojado nas páginas dos dias ser solúvel em raios de sol. Dessa maneira que ela tem de abrir as persianas de um quarto fechado, adiado no desejo de estar, e assistir a poeira dançar em frestas de sol. Quando a lembrança lhe invade os olhos feito cisco, ergue os dedos calejados de bordar desculpas. E faz malabares com raios e trovões, só para ter nas mãos luz e som que esbravejam. Colhe das tempestades. Deixa o medo sombrear o gesto, e ele ganha intensidade. Tem esse grito emperdenido lhe arranhando a voz. Sua prece é vermelha. Quando fica louca, esculpe palavras. Fecha as mãos como quem luta, simula um coração batendo. Lembra que nos átrios habita um vazio, essa possibilidade de fazer tudo circular. Campos de gramas azuis, um lírio vermelho. Senta na estrela d'alva. O céu ela encosta na terra enquanto desenha a palavra sacra de Tagore, e a terra cede suave ao redor de si: abre-se ao passar dos dedos, mar Vermelho na presença de Moisés. E o pensamento desliza na paz de quem se inscreve com brasas no livro da vida. Na nudez dos pés enxerga os descaminhos. Quando não lhe resta razões, caminha. Nunca conseguiu dar norma aos passos. Os sentimentos flamejam nos olhos, um acobrear do castanho. Se olhares bem, vais te surpreender no não-tempo, e verás que algumas mulheres ainda ardem nas fogueiras. Dançam em florestas fechadas. Trazem a primavera na boca. E o outono estampado nas unhas. A alma entrelaçada no universo. No falar, música das esferas. Não te espantes. Sentada ela tece um casulo. E pinta o corpo para a guerra. Há sempre um labor na espera. Deixa o cume da montanha encontrar o rio, só para mudar o curso das águas. Descobriu uma escuridão nos olhos da coruja. Rasga a barra das saias, desfia o enredo. Ela quer a palavra- fruta-madura. Sua escrita é esse descascar com unhas e dentes essa linguagem amarelo-manga, até que a polpa lhe escorra pelos cantos da boca. Sumo e Suco. E a semente lhe reste nas mãos. Essa paz, ela entrega quando escreve. Não te espantes. Fecunda-ação. Só se pontua no gozo o suspiro da palavra-sêmem.
Cecília Braga
Do que ela escreveu no chão, Deus tirando vida do barro: Se não falas,


Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite.
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

Rabindranath Tagore
* "Liebestod"- da Ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner.

quinta-feira, maio 08, 2008

A Literatura e a Vida, por Gilles Deleuze.

Decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o informe, com o inacabado, como disse Gombrowicz e como o fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravaza toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível. Estes devires encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, por intermédio de portas, entradas e zonas que compõem o universo inteiro, como na poderosa obra de Lovecraft. O devir não vai noutro sentido: não devimos Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que mulher, animal ou molécula têm uma componente de fuga que se descarta à sua própria formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhor razão de escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia vir a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa 2.
O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efectua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o, a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança 3. Do mesmo modo Kafka, o campeão de natação que não sabia nadar. Toda a escrita comporta um atletismo, mas não tem nada que ver com uma reconciliação da literatura com o desporto, ou com o fazer da escrita um jogo olímpico - este atletismo exerce-se na fuga e no eclipse orgânicos: um desportista na cama, dizia Michaux. Devimos tanto mais animal quanto o animal morre; e, contrariamente a um preconceito espiritualista, quem sabe morrer é o animal, é o animal que tem o sentido disso ou o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: “as nossas pobres pequenas patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade”. Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz4. A língua deve atingir desvios femininos, animais, moleculares, e todo o desvio é um devir mortal. Não há linha recta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para revelar a vida nas coisas. Escrever não é narrar as recordações, as viagens, os amores e o luto, os sonhos e os fantasmas. É o mesmo pecar por excesso de realidade ou de imaginação: nos dois casos é o eterno papá-mamã, estrutura edipiana que projetamos no real ou que injetamos no imaginário. Trata-se de um pai que se vai buscar no fim da viagem, no seio de um sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o seu pai-mãe. Marthe Robert levou até ao fim esta infantilização, esta psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao escritor senão entre Bastardo ou Filho reencontrado 5. Mesmo o devir-animal não está ao abrigo de uma redução edipiana, do género “o meu gato, o meu cão”. Como diz Lawrence, “se eu sou uma girafa e os ingleses vulgares que escrevem sobre mim são cães bem educados, aí está, os animais são diferentes, detestais instintivamente o animal que sou”6. Regra geral, os fantasmas não tratam o indefinido a não ser como máscara de um pronome pessoal ou de um possessivo: “uma criança apanhou” transforma-se depressa em “o meu pai me bateu”. Mas a literatura segue a via inversa, e só se levanta quando descobre sob as pessoas aparentes a potência de um impessoal que de modo nenhum é uma tomado num devir-mulher, depois num devir-rato, depois num devir-imperceptível em que se apaga. Generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança.
Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos retira o poder de dizer Eu (o “neutro” de Blanchot) 7. Claro, as personagens literárias são perfeitamente individuadas, e não são nem vagas nem gerais; mas todos os seus traços individuais elevam-nas a uma visão que as transporta para um indefinido, como um devir demasiado poderoso para elas: Achab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é um tipo, mas, pelo contrário, os seus traços individuais (amar uma rapariga, etc.) fazem com que aceda a uma visão, ele vê o ouro, de tal maneira que se põe em fuga numa linha de feiticeira na qual adquire a potência do indefinido — um avarento… de ouro, cada vez mais ouro… Não há literatura sem fabulação, mas, como Bergson o soube ver, a fabulação, a função fabuladora, não consiste em imaginar nem em projectar um eu. Contrariamente a isso, ela atinge essas visões, eleva-se até esses devires ou potências. Não se escreve com as neuroses. A neurose, a psicose, não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo se interrompe, quando está impedido, preenchido. A doença não é processo, mas paragem do processo, como no “caso Nietzsche”. E também o escritor como tal não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem.
A literatura surge então como uma tarefa de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas usufrui de uma irresistível pequena saúde que vem daquilo que viu e escutou, das coisas demasiado grandes para ele, demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, e que lhe dá, no entanto, devires que uma grande saúde dominante tornaria impossíveis 8. Do que viu, do que escutou, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos furados. Qual a saúde que seria suficiente para libertar a vida em todo o lado onde ela está presa, pelo homem e no homem? É a pequena saúde de Espinosa, enquanto dura, sendo até ao fim testemunha de uma nova visão, que se abre à sua passagem. A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as recordações, a menos que se faça delas a origem ou o destino colectivos de um povo a vir ainda emerso nas suas traições e abjurações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem narrar as suas próprias recordações, mas como recordações de um povo universal composto pelos emigrantes de todos os países. Thomas Wolf “deita por escrito toda a América, na medida em que ela se pode encontrar na experiência de um só homem” 9. Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, absorvido num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo não designa já um estado familiar, mas o processo ou a deriva das raças. Eu sou uma besta, um negro de raça inferior para toda a eternidade. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central, Melville para a América, apresentam a literatura como enunciação colectiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que, por intermédio do escritor e nele próprio, encontram a sua expressão 10.
Ainda que reenvie sempre para agentes singulares, a literatura é agenciamento colectivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é um assunto de pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, pelas raças e as tribos, e que não habite a história universal. Todo o delírio é históricomundial, “deslocamento das raças e dos continentes”. A literatura é delírio, e nisto joga o seu destino entre os dois pólos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. Ainda aí, há um estado doentio que pode sempre interromper o processo ou o devir; e encontramos a mesma ambiguidade da saúde e do atletismo, o risco constante que um delírio de domínio se misture com o devir bastardo, e arraste a literatura para um fascismo larvar, a doença contra a qual ela luta, até que a diagnostique nela própria e lute contra ela própria. Fim último da literatura, distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (“para” significa menos “no lugar de” do que “na intenção de”). O que a literatura faz na língua surge agora melhor: como diz Proust, aquela traça nesta uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patois reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante. Kafka fazia dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que vós, e porém não percebo 7uma palavra daquilo que dizeis. Criação sintáctica, estilo, é este o devir dalíngua: não há criação de palavras, não há neologismos que tenham valorfora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem.
A literatura apresentadois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou umadestruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma novalíngua na língua, por criação de sintaxe. “A única maneira de defender alíngua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fazer a sua língua” 11. Dir-se-iaque a língua está tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dosseus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, reside em que uma línguaestrangeira não é sulcada na própria língua sem que toda a linguagem, porsua vez, oscile, sem que seja levada a um limite, a um lado de fora ou a umavesso consistindo em Visões e Audições que já não pertencem a nenhumalíngua. Estas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que oescritor vê e escuta nos interstícios da linguagem, nos hiatos de linguagem.Não são interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele,como uma eternidade que não pode ser revelada a não ser no devir, umapaisagem que não aparece a não ser no movimento. Não estão fora dalinguagem, elas são o seu lado de fora. O escritor enquanto vidente eouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem queconstitui as Ideias. São estes os três aspectos que em Artaud estão perpetuamente emmovimento: a queda das letras na decomposição da linguagem maternal(R,T); a sua retomada numa nova sintaxe ou em novos nomes de alcancesintáctico, criadores de uma língua (“eTReTé”12); as palavras-soprofinalmente, limite assintáctico para onde tende toda a linguagem. E Céline,não podemos impedir-nos de o dizer, tão sumário o sentimos: a Viagem ou a decomposição da língua maternal; Morte a Crédito e a nova sintaxe como uma língua na língua; Guignol's Band e as exclamações suspensas como limite da linguagem, visões e sonoridades explosivas. Para escrever, talvez seja necessário que a língua materna seja odiosa, mas de maneira tal que uma criação sintáctica trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que a linguagem toda inteira revele o seu lado de fora, para além de toda a sintaxe. Acontece que se felicita um escritor, mas ele sabe que está longe de atingir o limite que se propôs e que não pára de se deslocar, que está muito longe de ter acabado o seu devir. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor.
Àqueles que lhe perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde: quem é que vos fala em escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa. Considerando estes critérios, vemos que, de entre todos aqueles que fazem livros com intenção literária, mesmo entre os loucos, muito poucos podem dizer-se escritores.
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11 Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster,em La Chronique fabuleuse, p.225).12 Como no original. [n.d.t.]
10 Cf. as reflexões de Kafka sobre as literaturas ditas menores, Journal, Livre de poche, p.179-182; e as de Melville sobre a literatura americana, D'où viens-tu, Hawthorne?, Gallimard, p.237-240.
8 Sobre a literatura enquanto assunto de saúde, mas para aqueles que não a têm ou que têm uma saúde frágil, cf. Michaux, posfácio a “Mes propriétés”, in La nuit remue, Gallimard. E Le Clézio, Haï, p.7: “Um dia, saberemos talvez que não havia arte, mas apenas medicina.”
9 André Bay, prefácio a Thomas Wolfe, De la mort au matin, Stock.
7 Blanchot, La part du feu, Gallimard, p.29-30, e L'entretien infini, p.563-564: “Qualquer coisa lhes acontece (aos personagens) donde não podem sair a não ser desapossando-se do seu poder de dizer Eu.” A literatura parece aqui desmentir a concepção linguística, que encontra a condição da enunciação nos “embrayeurs”, nomeadamente nas duas primeira pessoas.
4 Cf. J.-C. Bailly, La légende dispersée, anthologie du romantisme allemand, 10-18, p.38.
5 Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman, Grasset.
6 Lawrence, Lettres choisies, Plon, II, p.237.
2 Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster em La Chronique fabuleuse, p.225).
3 Le Clézio, Haï, Flammarion, p.5. No seu primeiro romance, Le procès-verbal, Folio-Gallimard, Le Clézio apresentava de maneira quase exemplar um personagem.
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Fonte: Deleuze, Gilles. “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.

quarta-feira, abril 23, 2008

Éter

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'Senhor, sinto que a Terra do meu espírito é ainda inconsistente e vazia, que as trevas cobrem a superfície do abismo... Assim está minha alma. Deus meu, assim está minha alma. Terra deserta e vazia, invisível e informe, e as trevas cobrem a superfície do abismo.Mas do abismo o meu espírito te invoca, Senhor, para que tu cries, também de mim, novos céus e novas Terras'.
Monge Cartuxo
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Sem hesitar, acreditava que os quatros elementos faziam o desejo ser. Sobejo. Por isso, também, o corpo tencionava. Mas não só. E nem sozinho. Depropósito é cidadão freático.Por isso, quando ela encontrar nascentes em um corpo há de se curvar para beber de rios subterrâneos, apaziguar essa sede ancestral. Das origens: a água. E essa ideia, corrente de ar, assanhando os pensamentos: O inconsciente é líquido. Lugar de criação. O Espírito de Deus pairando sobre as águas, as moléculas se agrupando. Lençol freático alimentando nascentes, poços. Os ciclos, as repetições. Jesus dizendo: Dai-me de beber que tenho sede, à samaritana. Repetia as palavras do Cristo: 'se conhecesse o Dom de Deus...', até sentir. Água viva. E nunca mais terás sede. Se o tempo fosse linear, talvez. Nunca mais é tão eterno que escapa, para sempre. Tem sede. No sempre. No nunca. Sempre mais. O sentimento tensiona o pensamento, e tanto.Precisava forçar a linguagem ao ponto de instrumento de corda. Vocal. Ar dedilhando palavras. Ar. É preciso vibrar para ser som. Estende as mãos, depois o corpo, para sentir na pele a música do mundo. Fecha os olhos para se ver dançar. Leve. Ar. Deixa esse canto primeiro inaudível das coisas ser silêncio falaz. Escutas?. Um grito em estado mineral sentou na beira de sua voz. Às vezes, é preciso contorcer um homem até que se cresça seus caninos. Assim, talvez uive. Talvez, rosne. Talvez, morda. Ou apenas assuste. Por ser tão ela. Água. As inundações, as secas, as cheias e as vazantes. Água. 70% do corpo. Líquido amniótico. A vida. O embalar que acalma, ainda e sempre. Os braços da mãe, colo do pai. Cantiga de ninar. Os próprios braços ao redor de si. Desamarra devagar os últimos laços, como quem se despe, sem pressa e, deixa deslizar na superfície da pele essa roupa desgastada dos dias. Cansou de ser outono nos olhos. Mergulhou e emergiu de novo nome. Batismo de profeta. O movimento. A mudança. Na tormenta, sempre se pode andar sobre as águas. Ou mergulhar nelas, bem fundo. Quem sabe, cultivaria grãos de mostarda para alimentar a fé. Caso Iemanjá lhe tirasse da água. Viva. E pudesse remover duas ou três montanhas. Terra. Seu corpo em pó. Barro. Ser. Provada no fogo.Desterritorializada no encontro. Terra. Jesus desenhando com o indicador na areia: Ninguém te condenou? Nem eu condeno a ti. Vá, e não peques mais. Mas pecaria, por crê. Caio Fernando repetindo: "não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa'. .... . É tempo de nascer de novo, eu sei. Pentecostes. O Espírito de Deus descendo em línguas de fogo. Ela falando em outras línguas. Sobre o mesmo assunto. Fogo. Sarsa ardente. Tudo queimando sem se consumir. Desejo. A Voz de Deus flamejando: Tira a sandálias dos pés porque o lugar em que estás é santo. Descalço. O corpo, templo. Nu. Intimidade que desmascara. Raniero Cantalamessa dizendo tão franciscanamente: 'a intimidade absoluta procura, talvez sem o saber, o centro do ser, o ponto de fusão, o lugar de repouso'. Tem sede. 'Se conhecesse o Dom de Deus...'. Se.
Cecília Braga

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'...De profundis? Alguma coisa queria falar... De profundis... Ouvir-se! prender a fugaz oportunida­de que dançava com os pés leves à beira do abismo. De profundis. Fechar as portas da consciência. A princípio perceber água corrompida, frases tontas, mas depois no meio da confusão o fio de água pura tremulando sobre a parede áspera. De profundis. Aproximar-se com cuidado, deixar escorrerem as primeiras vagas. De profundis... Cerrou os olhos, mas apenas viu penumbra. Caiu mais fundo nos pen­samentos, viu imóvel uma figura magra debruada de vermelho-claro, o desenho com um dedo úmido de sangue sobre um papel, quando se arranhara e en­quanto o pai procurava iodo. No escuro das pupilas, os pensamentos alinhados em forma geométrica, um superpondo-se ao outro como um favo de mel, alguns casulos vazios, informes, sem lugar para uma refle­xão. Formas fofas e cinzentas, como um cérebro. Mas isso ela não via realmente, procurava imaginar tal­vez. De profundis. Vejo um sonho que tive: palco es­curo abandonado, atrás de uma escada. Mas no mo­mento em que penso "palco escuro" em palavras, o sonho se esgota e fica o casulo vazio. A sensação murcha e é apenas mental. Até que as palavras "pal­co escuro" vivam bastante dentro de mim, na minha escuridão, no meu perfume, a ponto de se tornarem uma visão penumbrosa, esgarçada e impalpável, mas atrás da escada. Então terei de novo uma verdade, o meu sonho. De profundis. Por que não vem o que quer falar? Estou pronta. Fechar os olhos. Cheia de flores que se transformam em rosas à medida que o bicho treme e avança em direção ao sol do mesmo modo que a visão é muito mais rápida que a palavra, escolho o nascimento do solo para... Sem sentido. De profundis, depois virá o fio de água pura. Eu vi a neve tremer cheia de nuvens rosadas sob a função azul das vísceras cobertas de moscas ao sol, a im­pressão cinzenta, a luz verde e translúcida e fria que existe atrás das nuvens. Fechar os olhos e sentir co­mo uma cascata branca rolar a inspiração. De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar pala­vras e as palavras são mentirosas e eu continuo a so­frer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes den­tro de mim? por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, aju­dai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meus dedos e encaminha-se para a morte sere­namente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não sa­berei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus, dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lágrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxílio que eu não tenho peca­dos, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada, das profundezas chamo por vós, das profundezas cha­mo por vós das profundezas chamo por vós das pro­fundezas chamo por vós...
Agora os pensamentos já se solidificavam e ela respirava como um doente que tivesse passado pelo grande perigo. Alguma coisa ainda balbuciava den­tro dela, porém seu cansaço era grande, tranqüili­zava seu rosto em máscara Usa e de olhos vazios. Das profundezas a entrega final. O fim...
Mas das profundezas como resposta, sim como resposta, avivada pelo ar que ainda penetrava no seu corpo, ergueu-se a chama queimando lúcida e pura... Das profundezas sombrias o impulso incle­mente ardendo, a vida de novo se levantando infor­me, audaz, miserável. Um soluço seco como se a tivessem sacudido, alegria rutilando em seu peito in­tensa, insuportável, oh o turbilhão. Sobretudo acla­rava-se aquele movimento constante no fundo do seu ser — agora crescia e vibrava. Aquele movimento de alguma coisa viva procurando libertar-se da água e respirar. Também como voar, sim como voar... andar na praia e receber o vento no rosto, os cabelos esvoaçantes, a glória sobre a montanha... Erguendo-se, erguendo-se, o corpo abrindo-se para o ar, entregando-se à palpitação cega do próprio sangue, notas cristalinas, tintilantes, faiscando na sua alma... Não havia desencanto ainda diante de seus próprios mistérios, ó Deus, Deus, Deus, vinde a mim não para me salvar, a salvação estaria em mim, mas para abafar-me com tua mão pesada, com o castigo, com a morte, porque sou impotente e medrosa em dar o pequeno golpe que transformará todo o meu corpo nesse centro que deseja respirar e que se ergue, que se ergue... o mesmo impulso da maré e da gê­nese, da gênese! o pequeno toque que no louco deixa viver apenas o pensamento louco, a chaga luminosa crescendo, flutuando, dominando. Oh, como se har­monizava com o que pensava e como o que pensava era grandiosamente, esmagadoramente fatal. Só te quero, Deus, para que me recolhas como a um cão quando tudo for de novo apenas sólido e completo, quando o movimento de emergir a cabeça das águas for apenas uma lembrança e quando dentro de mim só houver conhecimentos, que se usaram e se usam e por meio deles de novo se recebem e se dão coisas, oh Deus.O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selva­gem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastra­vam-se pelo seu corpo assustado e o que neles va­lia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gesta­ção da infância e de sua dolorosa imaturidade reben­taria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, so­bretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mes­ma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fun­dido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreen­são de mim mesma em certos momentos brancos por­que basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo'.

Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem.

domingo, março 30, 2008

Compulsão.

Persepolis - De: Vincent Paronnaud, Marjane Satrapi. A animação foi ainda premiada nos festivais de Cannes, São Paulo e Vancouver.
Into the Wild - Baseado em fatos reais e no livro Into the Wild, uma “biografia” de Christopher McCandless escrita por Jon Krakauer. Direção de Sean Penn.Vale pela direção, pela trama, pela trilha sonora, pela realidade que sustenta o drama. A trilha sonora, composta por Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam, seu primeiro álbum solo. Bom por demais.
La Faute à Fidel! - Julie Gavras é filha do cineasta Costa Gavras e dirigiu e roteirizou o belíssimo “A Culpa é do Fidel”. Uma adaptação livre do romance Tutta Colpa di Fidel, da jornalista italiana Domitilla Calamai. De uma uma poesia cotidiana sem igual. Para re-pensar valores, ideias, afetos, a solidariedade, o comportamento de ovelha e a vida. Para aprender com os erros e se transformar. Ainda é tempo, sempre.
The Bucket List - Com: Jack Nicholson e Morgan Freeman. Uma das letras mais fabulosas do John Mayer, que canto feito prece, ainda mais que sou fã: Say.
Le Scaphandre et Le Papillon - Baseado na vida de Jean-Dominique Bauby.
"Por trás da cortina de pano roída pelas traças, uma claridade leitosa anuncia a aproximação da manhã. Doem-me os calcanhares, sinto a cabeça apertada num torno, e todo o meu corpo está encerrado numa espécie de escafandro. O meu quarto sai lentamente da penumbra. Observo pormenorizadamente as fotografias dos meus queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, um pequeno ciclista de folha enviado por um camarada na véspera do Paris-Roubaix, e o cavalete que sustenta a cama onde estou incrustado há seis meses como um bernardo-eremita sobre o seu rochedo.Não preciso de reflectir durante longo tempo para saber onde me encontro e recordar-me de que a minha vida sofreu uma reviravolta naquela sexta-feira, dia 8 de Dezembro do ano passado. Até essa altura, nunca tinha ouvido falar do tronco cerebral. Naquele dia descobri abruptamente essa peça fundamental do nosso computador de bordo, passagem obrigatória entre o cérebro e os terminais nervosos, quando um acidente cardio-vascular me deixou o dito tronco fora do circuito. Antigamente chamava-se-lhe “ligação ao cérebro” e a sua falta provocava muito simplesmente a morte. O progresso das técnicas de reanimação tornou o castigo mais sofisticado. É possível escapar, mas mergulha-se naquilo que a medicina anglo-saxónica baptizou muito justamente com o nome de locked-in-syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica encerrado dentro de si próprio, com o espírito intacto e os batimentos da pálpebra esquerda como único meio de comunicação.Evidentemente, o principal interessado é o último a ser posto ao corrente dessas prerrogativas. Pela minha parte, tive direito a vinte dias de coma e algumas semanas de nevoeiro antes de me aperceber verdadeiramente da extensão dos danos. Só emergi verdadeiramente no fim de Janeiro, neste quarto 119 do Hospital Marítimo de Berck, onde agora penetram os alvores da madrugada.É uma manhã vulgar. As sete horas, o carrilhão da capela recomeça a pontuar a fuga do tempo, de quarto em quarto de hora. Após a trégua da noite, os meus brônquios obstruídos põem-se a roncar ruidosamente. Crispadas sobre o lençol amarelo, as minhas mãos incomodam-me, sem que consiga determinar se estão a arder ou geladas. Para lutar contra o anquilosamente, desencadeio um movimento reflexo de alongamento que faz mover os braços e as pernas alguns milímetros. Tanto basta, por vezes, para aliviar um membro dorido.O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer. É possível elevar-me no espaço ou no tempo, partir a voar para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. É possível ir visitar a mulher amada, deslizar junto dela e acariciar o seu rosto, ainda adormecido. É possível construir castelos no ar, conquistar o Tosão de Ouro, descobrir a Atlântida, realizar os sonhos de criança e os sonhos de adulto.Basta de dispersão. É sobretudo necessário que eu componha o início deste diário de viagem imóvel, para estar pronto quando o enviado do meu editor vier recolher este ditado feito letra a letra. Na minha cabeça, mastigo dez vezes cada frase, corto uma palavra, acrescento um adjectivo, e decoro o meu texto, parágrafo a parágrafo.Sete e meia. A enfermeira de serviço interrompe o curso dos meus pensamentos. Segundo um ritual bem ensaiado, corre a cortina, verifica a traqueotomia e o gota-a-gota, e acende a televisão com vista à obtenção de informações. De momento, um desenho animado conta a história do sapo mais rápido do Oeste. E se eu formulasse o voto de ser transformado em sapo?"
Jean-Dominique Bauby - O escafandro e a borboleta, Livros do Brasil, 1999.
Bauby, + 9 de março de 1997.

Alguns filmes que mexeram na espinha dorsal dos meus significantes. Corre e assiste.


'O olho vê,
a lembrança revê
e a imaginação transvê'.
Manoel de Barros

sábado, março 29, 2008

Aranyani *


Entenda, nunca encontrei nenhum lugar, em mim, que caiba qualquer desconforto. Se visto a roupa mais leve, tiro as sandálias e canto - De profundis - é só por que o pensamento goteja. goteja. goteja. O Entendimento, se sabe, gosta de vias tortuosas. E intravenosas. Deito, e não durmo. Meu corpo parado desconhece o repouso. Duvido de Newton. Não rasgo as vestes. Acho agressivo esse gesto fariseu de demonstrar-se escandalizado. Escrevo, com letras cursivas, as palavras do profeta Oséias na terra molhada: Rasgai os vossos corações e não vossas vestes. Abro mão dos dentes, rasgo com unhas o peito. As palavras ganham mais vida assim: em vermelho escarlate. Acendo fogueiras. Na quadratura do círculo, na circunferência do quadrado. Três. Número cabalísco, criação. Lança de Netuno - aquele que rege o meu ascendente: peixes. Com três dedos: polegar, médio e indicador, a bênção. Santíssima Trindade. Da união de dois, todas as coisas. Verdade ancestral: quando se conta até três, tudo pode acontecer. Não duvido. E danço, em carne viva. Leio na nervura das frases o que tenho plantado. Deixo cair por terra o corpo e a face. Abro os braços para (a)colher. Homem Vitruviano. Mandala. O todo em movimento sem perder o centro. Sinto na pele a terra e suas origens. Arrepio. Um sopro de vida, nova - Ruah. A boca de Deus. Minhas narinas. É preciso não esquecer: ao pó voltarás, só pra fazer significar tudo até quando. Nunca perdi a pressa. Calma aparente, não de todo. Dentro, bem Quintana: 'Em mim, na minha alma, pressinto que vou ter um terremoto'. Mas encontro as docilidades de Deus nas coisas mais banais e tudo serena. Por tanto ansiar, temo. Não é resistência, é bicho ferido. Puro instinto. Se tu me tocar poderá ler em minha pele toda minha história, assim como se lê entre as estrelas os caminhos. Aceito, se me der a mão e caminhar vacilante comigo sobre as linhas de nossas vidas. Equilibrista. Lá em baixo, a teia do destino que o nosso cuidado trançar. Porque destino se faz assim: abre bem a palma da mão, inspira-se no que deseja, e desenha com pirógrafo. Se cair? Aproveita o voo. Ícaro. Se derreter? Melhor. Coloco um brinco de pavão na orelha esquerda.Sabedoria Indígena. Perto do perigo, aves se eriçam. Sei que o outro é sempre um outro. Já me olhei nos olhos até saber quem sou. Não espero completude, só cumplicidade. Aprendi a não esperar, mais. Nem desesperar, tanto.
Entenda, a vida tem me embalado de um jeito tão único que só encontrei meus passos com total entrega. Quando desando, sei bem o que quero...mas não sei se posso. Não quero licença para ser feliz. Não mais. Se preciso for, quero mostrar os dentes pelos meus direitos. E ter a ousadia de erguer a mão direita até a sua nuca. Perdi minha natureza selvagem em algum lugar, já encontro. Por isso as ausências. Mas minhas fomes sempre ditaram o meu ritmo e nenhuma palavra me brota dos dedos se não salivar na boca. Não deve estar longe, pois.Escrevo claro, no escuro. Emolduro um ou dois gemidos. Quando fecho os olhos uma estrela ascende o caminho. Vou, volto diversa. Gosto de velas, ritos antigos, incensos e ervas. Meu solo é místico e meu céu é de Vanilla. Entre o céu e a terra...Bem sabes. Suponho. Tenho as mãos estendidas, vem? E escreve, com a vida, a partitura da minha história.

Cecília Braga
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* Deusa Hindu: Aranyani, a deusa da floresta.

But what I'm thinking of just this time Why don't you...


Lay your head down, Keren Ann

(in my arms).

domingo, março 02, 2008

How often do you find the right person?

Once.

Vamo assistir, pessoas. Para perder menos tempo com joguinhos. Para vencer o medo. Para dizer o que tiver que ser dito, mas não em outro idioma. Por favor. Chega de tanto tentar salvar nossa pele. Já sabemos, ela alcançará seu fim. Salvemos nossa alma da ruína, desse excesso de gestos comedidos, do medo, da solidão.
Porque fugir é instintivo, e é biologicamente tão mais fácil e provável. Ficar é escolha.
Que haja amor e menos covardia nas nossas escolhas... Senhor, escutai as nossas preces. Amém.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Cadère

Tinha medo de despelar depois do beijo. E de tudo mais que pode acontecer quando se tem o Alasca no estômago de um corpo em chamas. Por isso, prendia a respiração para sonhar. Subterfúgio. Sim, já que é tão difícil acordar com o coração na altura dos ouvidos. E saber que o corpo canta uma fé ancestral, batucandobatucandobatucando em peito aberto. O pensamento dançando em círculos ao-redor-de-um-nome. Flamejante. De tanto crê, um êxtase fechou-lhe os olhos. Ela acredita que o silêncio pode pigmentar os versos. E que uma saudade alonga as pernas das horas. Em vão. O tempo tem suas birras. Então, barganha: dedilha a noite inteira num livro, debruça em seus olhos sua alma que gorjeia para a escuridão passar e treme. Porque sua linguagem guarda cadência de nuvens: quando suspira, ele lhe pode ler. E quando pensa, já está entregue. Nos versos. Aí, engole a seco uma estrela. Só pra ter uma reminiscência luminosa. Ele já pesponta a bainha de todos os seus pensamentos, idos e vindos. Por temor, reza. Por amor, deseja. : Que o sol penetre os recantos da tarde até essa ausência pintar um poente, e em ventre tão celeste o orgasmo do sol respingue as primeiras estrelas. Pra ele chegar. E abrir os braços, inclinar ao céu seus pensamentos, elevar o corpo pelas pontas dos pés, deitar as pálpebras, suspirar, escrever com o corpo extasiado os melhores versos. Enquanto ela retoma o fôlego. Porque certas leituras lhe tiram o ar, e logo depois o sono.

Cecília Braga

terça-feira, janeiro 08, 2008

Cielo

Nem ousava ser Natal. Talvez por isso, e por que uma moça vestia uma paz tão em guerra, eu tenha ancorado meus pensamentos entre o polegar e o indicador da sua mão esquerda.Agora, além dos três lírios, ela tinha nas mãos a minha atenção. Tudo amarelando ali.Pesar de preces antigas nas gavetas do tempo. Recitadas com fé ácida e algumas ânsias.
Meu olhar aportou, só pra de lá perder o rumo. O corpo inteiro apreensivo, num movimento suspenso...o coração atracando. Cada movimento que ela fazia para encontrar a paz, deixava em mim um desespero de guerra.
Ela fincou os demais dedos de sua mão esquerda na areia, como se tudo dentro fosse arrebatador demais e não pudesse se sustentar em si. E por Deus, eu entendia. Era resposta tonta de tanto medo de um pensamento virar impulso, ataque ou defesa. Compreender faz meu coração vibrar em minhas cordas vocais. Porque som de ausências se faz quando o ar falta e a boca se abre sedenta em meio a tanta saliva. Um desassossego ritmado no peito, bate pesado, cheio.Todo oxigênio é só alimento pra saudade. Suspira. Queima. O corpo inteiro. Como se a carne soubesse que é preciso incensar os altares pra alma se apresentar: - oferta.
Lírios. Três. Indicador e polegar se dobram para abraçar três caules inflamados de tanta esperança. Consolo? Três desejos pendentes nas mãos.Branco-gelo. Um desabrochar de medos. Cor do passar do tempo tingindo as flores: amarelo.E ela coloca a mão direita sobre o rubor da face: sol-ardências-vergonhas. A vida despindo os disfarces com as mãos dos instintos.
Caminha até uma onda ameaçar a firmeza dos seus passos. Espera incerta por um momento ímpar. Demasiadamente longo. Haveria de pedir por paciência, mas só haviam três lírios.
Mergulhou os pés e pensamentos.
Muita fé.Um suspiro.Um impulso.Uma entrega. Duas. Três.
E uma grande expectativa.
vai-vem. vai-vem. Tanta fragilidade nos sonhos. Nos lírios. Na vida.Na alma...
vai-vem. vai-vem. Tanta incerteza no movimento das águas. Nas mãos. Na vida. Na alma.
vai-vem. vai-vem. Algumas frustrações despetaladas na areia.
Afasta o corpo, ganha distância nos olhos. Alarga os passos. Pára. Olha de longe como se... tivesse se deixado lá. Um ou dois flamingos alçam vôo no seu estômago, aprendizagem de liberdade. Uma quase-vertigem, de quando tudo falha. Estátua de sal? Pediu com fé: - Por Deus, não!! Colocou os óculos escuros como quem acaba de colocar uma coroa de flores sobre uma lápide fria e vai se afastando de-va-gar, os dedos reconhecendo, no tato, o frio da ausência.
Ela se foi... e ficou. Caminhando dias a fio por meus pensamentos. E eu que nem encontro nas celebrações de ano novo um sentido. Mas, que quero encontrar sempre no instante novo matéria-prima pra criar e re-criar meus sentidos... Encontrei nos gestos daquela moça claridade de lua cheia sob o mar.
Tenho nas mãos três preces prateadas. No coração: tantas luas, São jorges e dragões. O olhar limpo de noite clara... vôos de flamingos no estômago. De quando você me olha e traça, sem saber, no ar, com o clarão do teu sorriso, uma rosa-dos-ventos.E isso me desterritorializa. Mas, já fiz as minhas preces.






Cecília Braga