terça-feira, outubro 27, 2015

Deus-queira.



Assim: sentava, com o espírito irrequieto lhe pesando nos braços, e tentava reger a vida com a inquietação dos pés. Três pensamentos, um suspiro engolfando gritos. O dedo anelar deslizando ao som dos seus desejos, sobre esse universo que se expande sob a sua pele. De-va-gar. Divagando realinhar a posição das estrelas, planetas e lua e mantê-los ali, alinhavados um-a-um sob estas horas escuras do dia, só pra ascender aos olhos a esperança. E mantê-la aquecida, ainda que seja pelo atrito das mãos da angústia procurando um lugar para aquietar-se no peito. Depois, sorri. Às vezes, a gente teima em desalinhar os chakras, pra se alinhar com o outro. E traz para si o Arcano XVIII: A lua. Sob sua luz, rememora ponto-a-ponto, em ponto cruz, suas escolhas. Cerzindo passado e futuro. Decide. Seus passos, movimento, a roda, o destino: em direção ao centro. 
*
*
Cecília Braga 

segunda-feira, outubro 05, 2015

Primeiros Encontros


Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, como a Epifania
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam,
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, "Abençoada sejas!"
E sabia que minha benção era impertinente:
Dormias, os lilases estendiam-se da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda estava quente.

Havia nos vibrantes dentro do cristal,
Montanhas assomavam por entre a neblina, mares espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida.
E — Deus do céu! — tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
E a fala enchia-se até transbordar
De poder ressonante, e a palavra ' 'tu''
Descobria seu novo significado: "rei".
Objetos comuns transfiguravam-se imediatamente,
Tudo — o jarro, a bacia — quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante de nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

Arseni Tarkovski